O ano é 1996 e todo mundo só queria saber de TV Colosso, Cavaleiros do Zodíaco e da tradução do Advanced Dungeons and Dragons para o português. E como nem tudo é mamata, eventualmente você teria que enfrentar uma tarefa escola ou outra, uma pesquisa sobre algum assunto para a aula de Estudos Sociais, História ou Geografia. Talvez um trabalhinho sobre reciclagem, talvez sobre a dissolução da União Soviética. Para conseguir a informação você vai para a casa de um parente, vizinho ou para a biblioteca da escola com o objetivo de consultar uma enciclopédia. Acha o verbete correto e copia alguns parágrafos numa folha de caderno. Na volta para casa você encontra com um amigo e acaba indo pra casa dele pra escutar o acústico do Nirvana. Você grava o álbum numa fita k7 e chega em casa a tempo de ligar a TV na Rede Manchete e assistir à quinta reprise do episódio no qual Ikki de Fênix enfrenta Shaka de Virgem na Batalha das 12 Casas.
Nostalgia à parte, esse pequeno relato ilustra o quão diferente era nossa relação com a mídia e a informação. Ter acesso a um verbete sobre um assunto, à música ou a coisas tão simples como desenhos japoneses envolvia toda uma logística, aparelhos diferentes, pessoas diferentes, lugares diferentes. Em 2022 tudo isso poderia ser feito usando um smartphone dos mais baratos e não demoraria mais que duas horas, contando aí que você escutou acústico do Nirvana inteiro enquanto conversava no Discord com seu amigo.
Todos os clichês à parte, é possível dizer que vivemos numa Era da Informação. A quantidade de dados ao alcance de qualquer cidadão com acesso à internet é virtualmente infinita.
Talvez, com algum esforço, fosse possível ler uma Enciclopédia Britânica do primeiro até o último verbete lá em 1996. Me pergunto se é possível fazer isso hoje na versão online da mesma enciclopédia. Além disso há uma quantidade imensa de manuscritos originais de obras literárias e científicas, cujos direitos autorais já não existem, disponível para qualquer um ler, consultar, citar e até escrever paródias – Orgulho & Preconceito & Zumbis não me deixa mentir.
Mais fascinante ainda é imaginar que cada pessoa que acessa a internet gera informação – quase sempre sobre si e os seus. Fotos, vídeos, áudios, ensaios e reclamações, fofocas e resenhas, piadas e bobagens. E aqui é que a coisa começa a se complicar. A adesão em massa à internet foi mediada pelo surgimento redes sociais, mas não foram os pioneiros Orkut e Myspace os principais vetores dessa massificação. Facebook e Youtube foram as primeiras redes sociais verdadeiramente mundiais e transformaram profundamente a maneira como usuários interagem com a informação e entre si.
Dois fenômenos marcaram a internet dos últimos 15 anos. O primeiro, descrito pelo jornalista iraniano Hossein Derakhshan foi a implementação de uma lógica televisiva na interação entre usuário e internet. O segundo, muito bem descrito pelo pesquisador bielorrusso Evgeny Morozov, diz respeito a como a internet se tornou uma ferramenta vigilância em massa e difusão de propaganda de cunho violento e nacionalista. Para quem foi, há uns 20 anos atrás, um obcecado com a ideia de “cultura livre” e que via na internet uma ferramenta para uma redenção de vários males do mundo, as conclusões de Derakhshan e Morozov são um banho de água fria.
Olhando em retrospecto essa crença numa espécie de “cyberutopia” que emergiria da simples ampliação do acesso à internet veio a calhar naquele momento do pós-Guerra Fria. Um pequeno interlúdio numa tempestade, talvez o olho do furacão. Mas não me entendam mal: o problema da internet está longe de ser a participação ampla ou sua entrada no caráter de cultura de massas. A desgraça está na arquitetura dessa participação.
Quem já leu os Facebook Papers ou os inúmeros estudos independentes sobre o Youtube sabe que essas redes operam, na prática, como vetores de propaganda de uma extrema-direita emergente. Não há moderação nem tentativas de reduzir o fluxo de desinformação. Pelo contrário, os executivos do Vale do Silício sabem que indivíduos radicalizados e/ou com problemas de saúde mental tendem a consumir conteúdo compulsivamente. E quanto mais cliques, mais dinheiro.
Já que atingimos um ponto bizarro da história da humanidade no qual a informação é potencialmente infinita e muitas vezes gratuita, as companhias do Vale do Silício não têm mais como principal objetivo a venda da informação. O que elas desejam é cativar e vender a nossa atenção. Nós não vivemos numa economia da informação, mas numa economia da atenção. Se a informação é potencialmente infinita foi a nossa atenção se tornou um recurso escasso.
Esse é outro motivo pelo qual os conteúdos violentos, bizarros e imbuídos de discurso de ódio propagam tão rápido e chegam tão longe. Na roleta dos sentimentos há uma chance enorme de que o engajamento se dê pelo ultraje e pela repulsa. Os algoritmos não são capazes de entender o conteúdo, apenas percebem a capacidade de gerar interação com frequência. A torrente de mentiras e loucuras que tomou conta do mundo nas últimas décadas é fruto de uma engenharia sofisticada feita sob medida para capturar nossa atenção e mantê-la sob cativeiro.
O choque de realidade derivado dessa pequena análise sobre os rumos da internet é capaz de esmagar qualquer um dos nossos otimismos iluministas. A ubiquidade da informação não trouxe o esclarecimento mas a entropia, um caos informacional que permite a emergência desses regimes de pós-verdade. Por isso é necessário e urgente desenvolver instrumentos de bordo para navegar essas águas turvas e difíceis, em níveis individuais e coletivos.
*Esse pequeno ensaio foi escrito ao som do acústico do Nirvana e de vários episódios de Cavaleiros do Zodíaco. Digamos que um envelheceu muito melhor que o outro – mas não vou dizer qual.
Referências
Salve a Internet
https://piseagrama.org/salve-a-internet/
Is Our Attention for Sale?
All Watched Over the By the Machines of Loving Grace
Viracasacas #41 - Redes de Desesperança
https://viracasacas.libsyn.com/website/41-redes-de-desesperanca-2
Viracasacas #258 - Redes de Omissão
https://viracasacas.libsyn.com/258-redes-de-omisso-com-jairmearrependi
Viracasacas #249 - O Arquivo F
https://viracasacas.libsyn.com/249-o-arquivo-f-com-tesoureiros-do-jair
Viracasacas #239 - Entropia, pós-verdade e cibernética
https://viracasacas.libsyn.com/239-entropia-ps-verdade-e-ciberntica-com-letcia-cesarino
Há uns meses tomei um susto quando meu sobrinho de 10 anos pediu pra eu me inscrever no canal dele no YouTube, ele ia streamar (?) um jogo. Porque uma criança de 10 anos quer ser um precarizado digital??? Porque tá todo mundo tão empenhado em trabalhar de graça pra essas Big Techs??
Ainda tô sentindo esse susto