Chernobyl é aqui
O texto a seguir foi escrito e publicado em 12 de Janeiro de 2021, como parte da coluna ehvarzea.
Em 2019 a série Chernobyl estreou na HBO. Com uma superprodução e um grande elenco, a série imediatamente se tornou um sucesso, muito assistida, debatida e, sobretudo, interpretada. O enredo, como informa o título, está centrado nos eventos trágicos do acidente na usina nuclear de Chernobyl, que aconteceu na década de 1980 numa Ucrânia que integrava a União Soviética.
O desastre de Chernobyl é lembrado como o pior acidente com uma usina nuclear ocorrido na história – Fukushima vem depois, num distante segundo lugar. É uma história que mistura negligência, inexperiência, falhas técnicas, fatalidades, arbitrariedade e jogos de poder. Durante um experimento com um reator, uma série de falhas técnicas e decisões apressadas gerou uma reação em cadeia que resultou numa explosão. Toneladas de material radioativo foram lançadas no ar. Dezenas de pessoas morreram imediatamente e muitas outras foram expostas à radiação durante os esforços para conter danos e nos anos seguintes. Criou-se uma zona de exclusão em torno de de Pripyat, uma cidade fundada e planejada para servir à usina nuclear. As estatísticas de vítimas diretas e indiretas do incidente em Chernobyl, sobretudo devido ao espalhamento da radiação, estima 4 mil mortes entre 16 e 60 mil pessoas que sofreram efeitos nocivos menores. A admissão de tamanho fracasso também enfraqueceu a União Soviética naqueles tempos da Guerra Fria.
No episódio #118 do Viracasacas Caio Boiteux, mais conhecido como Bluehand, explica todos os pormenores do acidente bem como os pormenores da estrutura do Estado na União Soviética. A pressão por resultados nos testes com o reator, a tentativa de minimizar os danos diante da opinião pública, tudo isso tinha relação com o fato de que aquelas pessoas precisavam ser eleitas para seus cargos. Fora isso, a Guerra Fria sempre obscureceu o fato de que a União Soviética começou como uma república socialista povoada por operários camponeses empobrecidos e, a despeito de todas adversidades e carências, havia se elevado a uma posição na qual era capaz de rivalizar com a maior potência mundial. Mas certas precariedades continuavam lá e contribuiram para que o acidente fosse uma tempestade perfeita.
Embora Craig Mazin, o criador de Chernobyl, diga que a série é uma narrativa sobre mentiras e poder, muita gente entendeu que a mensagem era simplesmente uma crítica feroz ao socialismo soviético. Em vários momentos a série realmente parecer tratar a negligência política e decisões ruins (ou criminosas) de políticos e funcionários públicos como algo exclusivo ao socialismo. “Vejam só, no Ocidente livre algo assim nunca aconteceria!”. Num artigo da revista conservadora National Review escrito pelo colunista Kyle Smith, ele ridiculariza aqueles que assistem a série e veem ali um equivalente do trumpismo e do que os jornalistas chamam de pós-verdade. Cito aqui um pequeno trecho, traduzido e publicado pela Gazeta do Povo.
De acordo com a caricatura da esquerda, Trump também se opõe perigosamente à ciência e à razão. Ele é supostamente o negacionista teimoso que não reconhece a Cherbobyl em câmera lenta que é o aquecimento global.
No final de 2019 a pandemia do novo coronavírus começou na China. O governo chinês tomou providências, decretou lockdown, informou a Organização Mundial da Saúde. Naquele primeiro momento abundavam colunas criticando o “autoritarismo do governo chinês” no tratamento da pandemia e comparando o lockdown e outras medidas sanitárias com medidas de exceção ou mesmo genocídio. Num segundo momento, já em 2020, quando a pandemia atingiu a Europa e as Américas, o governo chinês foi acusado de ter escondido dados, ou simplesmente demorado a soar o alarme. Já no segundo semestre de 2020, quando a China havia controlado a pandemia, passou a ser acusada de mentir sobre os números oficiais de infectados, recuperados e mortos.
Enquanto isso, a COVID-19 fez estragos substanciais na Europa, onde o norte de Itália se tornou um exemplo de morte em massa por causa da negligência de seus políticos em tomar as medidas necessárias. E, bem, cortamos para as Américas. Atualmente Bolsonaro e Trump governam países que juntos são responsáveis por UM TERÇO do total de mortes por COVID-19 no mundo. Sim, Brasil e Estados Unidos são países que têm uma grande população mas ali, no começo da pandemia, muita gente achava que o pau ia quebrar na África Subsaariana, na Indonésia, na Índia e do Sudeste Asiático. Atualmente morre-se mais do novo coronavírus nos Estados Unidos, Brasil e Inglaterra do que em países como Bangladesh, Jordânia e Irã – calculando mortes por milhão de habitantes.
Os Estados Unidos, sob o comando do Republicano Donald Trump, foi um absoluto desastre no controle da COVID. O país mais rico e poderoso do mundo preferiu uma abordagem inconsequente e catastrófica, com o presidente estimulando seus apoiadores pegar armas e invadir sedes de governos estaduais que precisaram tomar medidas emergenciais. Depois das invasões um grupo foi preso por tramar o sequestro e a execução da governadora do estado de Michigan. A organização Feeding América estima que atualmente 50 milhões de americanos estão passando fome. Enquanto tudo isso acontecia Donald Trump, não contente em perder sua reeleição, mentia em todos os meios possíveis que havia sido vítima de uma fraude e fazia o possível para a atrapalhar a transição e os esforços de ajuda.
No Brasil, Bolsonaro primeiro decidiu que a gestão ideal da pandemia era aquela feita pelo grupo de whatsapp dos seus financiadores de campanha e puxa-sacos remunerados. No momento no qual ele deveria implementar medidas sanitárias para contar o contágio pelo vírus, Bolsonaro estava ocupado dando declarações mentirosas sobre fraude nas eleições e insuflando seus apoiadores a invadir o Congresso e o STF, dando piti na frente de quartéis, promovendo a aglomeração e, claro, perseguindo seu então ministro da Saúde. O governo decidiu por conta própria que a COVID seria tratável usando medicamentos de amplo acesso como a cloriquina, a hidroxicloroquina e a ivermectina – substâncias que de fato podem apresentar ação antiviral em testes in vitro mas que não demonstraram eficazes no combate da doença. Depois de conseguir se livrar de dois ministros da Saúde que não aprovaram essa sandice, Bolsonaro nomeou o General Pazuello para o cargo. O general, supostamente especialista em logística, parece ter um imenso problema em conseguir os insumos necessários para vacinar a população – isso quando não faz coro com o presidente da República contra a vacina do Butantã, que supostamente beneficiaria João Dória, governador de São Paulo que cresce o olho para a disputa presidencial.
Vejam bem, durante a pandemia nosso governo direita “puro sangue” tem ministros e o presidente brincando com a vida dos brasileiros. Mais de 200 mil mortos e todo um mundo de recursos de propaganda estatal para minimizar a RESPONSABILIDADE do governo pela conduta criminosa na pandemia e promover tratamentos que eles mesmos admitem que não funciona. Sim, quando cobrado pelo Tribunal de Contas da União a respeito do suposto superfaturamento na compra de insumos para a produção de cloroquina, o Exército simplesmente enviou ofício admitindo que eficácia da cloroquina não é comprovada, e que tinha o objetivo de levar ‘esperança a corações aflitos’.
Enquanto gravo isso aqui, recebo diversos relatos de pessoas revoltadas ou desesperadas com a situação dos hospitais em Manaus. Acabou o oxigênio em vários deles, a cidade têm recorde de internações e mortes mas o pequeno General Pazuello, que visitou a cidade dias antes, disse que é inadmissível que a rede pública não esteja usando… o mesmo medicamente que o exército já admitiu que não tem eficácia. Também prepara um aplicativo para disseminar o “tratamento precoce” com o coquetel de piadas que o presidente adotou.
Quanto mais estudo a respeito de política e da história do século XX mais eu tenho certeza que os governos de esquerda (fossem eles socialistas, populistas ou simplesmente progressistas) frequentemente são usados como projeções convenientes. A intelectualidade de direita que outro dia criticava a União Soviética a partir de Chernobyl agora flerta com ou apoia políticas muito mais cruéis. Em breve contribuirão para que a responsabilidade pelo resultado letal desse crimes será diluída a partir de um monte de discursos patéticos sobre “liberdades individuais” ou a “tirania dos especialistas”. Eis o Ouroboros de merda que é o Bolsonarismo: o governo mente para as pessoas, não cria condições para que elas seja protejam, estimula a revolta delas contra aqueles que tentam conter a doença e depois lava as mãos com maior tranquilidade do mundo.