Conservadorismo para a Morte
Em meados de 2008 uma parte dos amigos, conhecidos e parentes começou a se definir como “de direita”. Colunas do Reinaldo Azevedo e citações às mazelas de qualquer governo de esquerda no mundo passaram a ser rotineiras em correntes de e-mail e postagens de redes sociais.
Um tema recorrente era como a esquerda seria responsável por incontáveis mortes. Mais do que aquelas cifras escritas sobre imagens de Stálin ou Mao, o Partido dos Trabalhadores, então no poder, era responsável por todos os problemas de segurança pública do país. Cada vítima de um crime deveria cobrar diretamente do presidente da República. Cada paciente que morria no sistema público de saúde era responsabilidade direta de Lula. Cada empresa falida, cada criança mal alfabetizada, cada crise econômica em países aliados… vocês entenderam.
Em certo sentido isso era algo natural, esperado. Ainda que o governo Lula desfrutasse de uma aprovação muito substancial, não é estranho que um incumbente fosse responsabilizado pelo que se passava no país.
E, no entanto, isso foi se desenvolvendo em algo estranho. Nos anos seguintes à eleição de Dilma Rousseff surgiram vídeos de pessoas que se diziam revoltadas com o governo pelas coisas mais banais, tipo o preço do vinho, ou com coisas essenciais – como o preço da gasolina. Essa retórica de “responsabilização”, resumida no meme “a culpa é do PT” não acabou com a deposição de Dilma e, mais importante, não acabou com a eleição de Bolsonaro. Mais ainda, ela foi progressivamente transformada em uma culpa cada vez mais difusa, cuja raiz estaria na Constituição de 1988, ou mesmo, na própria ideia de Democracia.
Marcos Nobre resumiu de forma brilhante num episódio do podcast Guilhotina que “o sistema” contra o qual o governo Bolsonaro diz estar investido é a democracia. Isso está presente na retórica de Paulo Guedes, para o qual tudo o que aconteceu depois de 1985 pode ser resumido como “socialismo”; isso está na retórica do terraplanista prolixo Ernesto Araújo, para o qual a diplomacia pode ser resumida a bordões sobre patriotismo, subserviência aos Estados Unidos e textões constrangedores.
Dessa forma, o bolsonarismo se esquiva de qualquer responsabilidade sobre o governo para o qual foi eleito. Bolsonaro discursa como se ele estivesse governando num país dominado pela esquerda. As teorias imbecis do olavismo servem para dar sobrevida a essa fantasia, e a lista de comunistas iria desde grandes corporações até todo o sistema financeiro mundial. Bolsonaro, então, consegue se fingir de pequeno, se colocar não como o presidente do Brasil mas como um humilde político que luta contra “o sistema” (esquerdista) – que nada menos é do que a democracia constituída a partir da Nova República.
Nós conhecemos a irresponsabilidade de Bolsonaro, ela é visível a olho nu e fede a quilômetros de distância. Mas Bolsonaro não se elegeu e nem governa sozinho, por mais que queira fingir que o faz. Tem apoio de setores importantes do congresso, de empresários, de industriais, de jornalistas, de conglomerados de mídia, de figuras da ativa e da reserva das Forças Armadas, de uma fatia substancial do judiciário e, sobretudo, de quase todo aquele espectro de “intelectuais” (haja aspas) anti-esquerda que se formou no Brasil.
Resta, então, pensar a quem devemos responsabilizar pela destruição orquestrada do país.
Aqueles parentes, amigos e conhecidos que se diziam “de direita” e, mais tarde, “de direita conservadora”, que antes eram tão zelosos em atribuir às esquerdas a responsabilidade por qualquer mazela que acontecia no país já não são capazes de fazer a mesma coisa. A velocidade com a qual o bolsonarismo destrói o país é algo espantoso: pilhas de cadáveres produzidas pela incompetência ímpar no trato da pandemia; o desmonte das instituições ambientais refletido na devastação dos biomas brasileiros; o total abandono das pastas da saúde e da educação; sem contar o aparelhamento do judiciário e o descarado uso da máquina pública para fins privados.
Mas mesmo assim Bolsonaro não é culpado de nada. Ora é representado como um “cidadão comum” que deveria ser reconhecido pelo fato de que seria supostamente “esforçado” ou “bem-intencionado”. Ora é visto como uma espécie de “vítima do sistema”. E o grande crime cometido pelo “sistema”? Não deixar que ele cumpra as ameaças de fuzilamento, tortura e imposição de uma ditadura que ele fez durante a campanha. Pobre Bolsonaro.
Diante de um fiasco óbvio, aqueles que se diziam eleitores de Paulo Guedes, devotos do Liberalismo para a Servidão, agora correm para falar que o governo nunca foi liberal. E, pasmem, alguns conservadores dizem que o governo nunca foi conservador. Há também quem diga que Bolsonaro nunca foi direita, vejam só, enchendo a boca para citar Tatcher, Reagan e Churchill com aquela frase prontinha de que só é de direita quem defende as liberdades individuais.
Talvez aí caiba dizer que a “defesa de liberdades” é justamente o grande pilar da ideologia bolsonarista: madeireiros e garimpeiros estão livres para pilhar o país; bandidos fardados estão livres para extorquir e traficar; a ABIN está livre para mentir para a ONU e espionar “maus brasileiros” que, vejam só, ousaram discutir em público os problemas ambientais do país; Donald Trump está livre para dizer de quem devemos comprar e para quem precisamos vender; a COVID está livre para matar.
O que resta é reconhecer que, depois de uma década enchendo o raio do saco, o que a direita brasileira conseguiu produzir foi essa excrescência em forma de governo. Os grandes “nomes técnicos” se reduziram a um juiz famoso, cuja principal função na cadeira foi mover processos contra críticos do presidente; e um professor pardal saído diretamente das páginas de institutos liberais para a vida real, que é incapaz de fazer seu trabalho mesmo que seja cotidianamente ADULADO pelos detentores do capital e pelos maiores veículos de mídia do Brasil.
Como falamos: uma classe estranha de supostos dissidentes do bolsonarismo aparece para dia sim, dia não, dizer que Bolsonaro não é liberal, não é conservador e, vejam só não seria nem de direita. Em 2018, durante a greve dos caminhoneiros, eu já havia observado esse tipo de retórica, previ que ela se intensificaria no futuro e escrevi um texto a respeito. A direita no Brasil, seja qualquer for sua encarnação ideológica, tem uma enorme habilidade em reescrever seu passado.
Pouco se fala em como figuras de peso de certa intelectualidade conservadora foram entusiastas e participantes do Estado Novo de Getúlio Vargas. Pouco se fala em como o Integralismo, o fascismo verde-e-amarelo, teve participação essencial em dois golpes militares. No Brasil, a direita é sempre limpa, nova e cheirando a desinfetante… especialmente depois da Lava Jato. Ela não tem história, não tem culpa e quando chamada à responsabilidade das inúmeras atrocidades cometidas pela Ditadura Militar, ela preferiu dobrar a aposta e falar que foi uma Ditabranda, que foi pra combater o comunismo, que a culpa dos ilibados militares praticarem tortura contra crianças foi dos pais das mesmas. Na dúvida, substituíram a veneração aos generais ditadores e passaram a adorar diretamente aquele que despedaçava corpos em nome de sabe-se lá o quê. Hoje temos o país foi abandonado à própria sorte, como é comum nesses momentos, e os militares passaram a ocupar cadeiras e mais cadeiras no executivo e fazer jogos de guerra na floresta que queima.
“Mas os militares não são conservadores, são positivistas.”
Bobagem. Toda filosofia que embala o conservadorismo brasileiro está na caserna, o anticomunismo paranoico que exala do olavismo não apenas têm apoio como também vem dos quartéis Como o professor João Cezar de Castro Rocha já mostrou, as teorias delirantes de um “marxismo cultural” ou uma “revolução comunista” feita por meio da abertura democrática foram gestadas na caserna. Mais uma vez devemos à direita brasileira a ascensão de um governo incompetente, irresponsável e criminoso. Um espetáculo cruel e idiota que, sem data pra acabar, teve como grande ato uma clara tentativa de autogolpe deflagrada durante uma crise sanitária que já matou mais de 150 mil brasileiros.
“Mas isso é de tentar autogolpe é jacobinismo, os conservadores são contra insurgências e não apoiam nenhum tipo de mudança brusca.”
A história que o conservadorismo conta sobre si mesmo é muito nobre. Os conservadores existiriam como contraparte aos ideais da Revolução Francesa, e isso se deveria ao “terror” desencadeado pelos jacobinos. Essa história é repetida em toda coluna escrita por intelectuais de direita, e somada uma mitologia que prega que o conservadorismo apenas quer “preservar o que é bom”, ou “impedir mudanças bruscas na sociedade”. Essa hagiografia do conservadorismo não vai discutir a “Revolução Conservadora” da República de Weimar, um grupo de intelectuais que se autointitulava conservador, e que produziu boa parte da argumentação acadêmica, estética e jurídica para a ascensão do Nazismo. E não falo aqui de quaisquer nomes, já que esse grupo de notáveis incluía figuras como Carl Schmitt, Martin Heidegger e Oswald Spengler. Se nos aproximamos da América Latina, podem os ver o conservadorismo desavergonhadamente alinhado às ditaduras que esmagaram esperanças e serviram apenas para colocar em curso planos de aniquilação física de partidos e organizações de esquerda.
Se eu aplicasse a lógica de responsabilização que meus pares, conservadores de direita, aplicam ao socialismo, o que eu teria? De quem é culpa pelos 150 mil mortos pela COVID no Brasil? Quem é o culpado pela destruição acelerada dos biomas brasileiros? Quem é culpado pela consolidação de poder do paramilitarismo mafioso nos grandes centros urbanos?
“Mas a direita só assumiu o poder agora, o Bolsonaro não opera milagres.”
Então voltemos para os “bons tempos da ditadura militar”, quando estima-se que certa de 3,5 milhões de brasileiros morreram em meio às secas das décadas de 1960-1970. Outros milhares de indígenas morreram durante a abertura da Transamazônica e numa surreal e literal operação de guerra deflagrada contra o povo Waimiri-Atroari por causa da BR-174. Pense no subordinado do Coronel Ustra dizendo em depoimento que foi ler o Arquipélago Gulag e que o capítulo das torturas “era um paraíso” comparado ao que acontecia nos porões brasileiros.
Pois bem, eu diria que o conservadorismo à brasileira está muito bem representado na figura de Bolsonaro. Sua argamassa é um antiesquerdismo histérico, delirante e paranoico. Seu objetivo é manter o poder usando de qualquer artifício. Seu método é a destruição lenta, segura e gradual da Nova República. Os grandes monumentos ao conservadorismo brasileiro deveriam ser as valas coletivas, aquelas abertas recentemente em Manaus e a já infame do Cemitério de Perus.
Penso em todas aquelas colunas dos semanários acusando as esquerdas brasileiras das mais loucas loucuras: denunciando fantasmas, invocando mentiras, falando em planos de dominação comunista num governo de centro-esquerda absolutamente moderado. As esquerdas brasileiras jamais subiram em palanques para prometer fuzilamentos, exílios e derramamento de sangue. Pois bem, o que tradição educada e bem-nascida do liberal-conservadorismo brasileiro conseguiu fazer foi isso. A conta da soberba e da sordidez das direitas brasileiras, como de costume, será dividida desigualmente.