Para cada cabeça, um cartaz.
Sobre 2013.
Eu vivia no interior na época. Não frequentei nenhuma grande manifestação e acompanhei a maioria do que aconteceu através de posts de amigos, políticos e ativistas no Facebook. O que eu escrevo a seguir é uma análise de caráter pessoal.
Eu cresci acreditando que grandes manifestações de rua eram muito importantes. Fui muito entusiasta do Movimento por Justiça Global, chamado por seus detratores de Movimento Antiglobalização, que ia botar pra quebrar a cada reunião do Fórum Econômico Mundial. Minha visão política foi muito moldada pelo anarquismo/autonomismo dessa época.
O fato de eu não me reconhecer em coisas como o movimento estudantil ou a política partidária me deixava bastante propenso a uma desconfiança do poder em geral. Então, essa ideia da ocupação das ruas, do protesto, do enfrentamento ao poder parecia algo naturalmente positivo.
A chegada do PT ao poder em 2002 foi um evento estrondoso. Nós anos seguintes eu entenderia esse evento por dois ângulos: a profunda transformação positiva que aconteceria nos interiores onde eu trabalhava; e os limites da política partidária e de um governo de coalizão.
Entre 2004 e 2011 a sensação era de uma incrível melhoria gradual de tudo. As universidades estavam fora do arrocho, era relativamente fácil arrumar trabalho e emprego, a economia me permitia pela primeira vez na vida planejar o futuro.
E o governo Lula conseguia equilibrar políticas aqui e ali. Você tinha coisas que só um governo de esquerda e progressista faria no Brasil: ações afirmativas, políticas públicas voltadas para o pequeno agricultor, uma agenda cultural incrivelmente ambiciosa e moderna etc.
Acho que um bocado disso era equilibrado pela própria figura do Lula e um por uma equipe de ministros e figuras públicas muito competentes. Em várias áreas onde o governo Lula era excelência o governo Dilma foi pouco ambicioso, quando não foi tímido.
O governo Dilma tinha sido marcado por uma tensão permanente entre o desenvolvimentismo e as questões indígenas e ambientais. A grande agenda do ministério da Cultura se passou a gravitar em torno de direitos autorais. Dilma decidiu apostar todas as suas fichas na economia.
Pra muita gente o governo Dilma parecia uma inflexão à direita do que a havia sido o governo Lula. Eu não digo que era porque, como eu falei antes, a própria figura do Lula e a composição do seu governo tornavam possíveis certas arbitragens.
E aqui entra um detalhe importante: como já falei mil vezes, acho que pra muita gente do campo progressista havia uma tese triunfalista a lá "Fim da História" do Fukuyama. Naquele momento parecia que o pior que poderia acontecer ao Brasil eram 4 anos de governo do PSDB.
Esse triunfalismo ilusório só existia porque o mundo vivia um momento de expansão econômica e a América Latina passava pela famosa Onda Rosa. Nem os horrores da Guerra do Iraque pareciam perturbar essa ilusão.
Acho que muita gente da minha geração cresceu imaginando que algo como o PT era uma coisa "normal" numa democracia burguesa. Ou que o PT no poder era o que impedia uma "verdadeira esquerda" de emergir. Eu mesmo fui aprender sobre a história política do Brasil depois de adulto.
Ao mesmo tempo em que isso acontecia as direitas no Brasil se organizavam como nunca. A Frente Parlamentar da Agricultura (FPA) e a Conferência Nacional da Agricultura (CNA) estavam jogando pesado, tentando vender uma imagem moderna e pop às velhas elites agrárias nacionais, que cresciam exponencialmente munidas de crédito barato e ilimitado.
Era um momento de normalização das pautas de (extrema)-direita através de eufemismos (politicamente incorreto, por exemplo). E o tipo de delírio bolsonaristas que assistimos nos últimos anos era o que figurava nas páginas do maior semanário do Brasil - sim, eu falo da revista Veja.
Naquela altura, as igrejas evangélicas também haviam se tornado difusoras de ideologia da extrema-direita norte americana. Era um momento no qual se ampliaram os ataques às religiões afro e houve a difusão de um discurso anticientífico mais amplo. A Lagoinha é um exemplo disso.
2013 começou com uma pauta simples e recorrente. Sempre houve protestos contra o aumento de tarifas de transporte. Sempre foi uma demanda de movimentos populares e estudantis. Logo juntaram-se a eles outras pautas, muita gente na rua e, claro, muita repressão policial.
O que eu notei na época é que cada vez que eu tentava ler notícias sobre os protestos no Facebook eu era BOMBARDEADO com convites para eventos de protesto com pautas genéricas "contra a corrupção", "contra os partidos" e "a favor do Brasil".
Esses grupos eram todos muito bem organizados, muito bem editados, com artes profissionais e conteúdo que a gente reconheceria depois no bolsonarismo. Essa tomada de 2013 pelas direitas foi um movimento muito bem orquestrado.
As esquerdas estavam divididas entre a defesa dos legados de governos progressistas e a ideia de "encher as ruas". E mesmo nas esquerdas que ocupavam as pautas eram totalmente difusas: preço de passagem, protesto contra impactos das obras da copa, etc etc etc.
As direitas, por outro lado, apostaram em pautas genéricas: falavam "contra a corrupção", principalmente. Usavam uma identidade visual que misturava ufanismo brasileiro, seleção e classe média indignada. E despejavam caminhões de dinheiro em anúncios de redes sociais.
A essa altura os jornais já criminalizavam os grupos de esquerda e enalteciam os grupos de direita, inventando lideranças onde não havia e promovendo as figuras mais estranhas. Onde isso deu nós já sabemos.
O legado de 2013 foi um Brasil pior. As esquerdas que foram pras ruas leram muito mal a situação e apostaram que os protestos não precisavam ser dirigidos. "Encher as ruas" por si só não foi capaz de resolver nada, como o fracasso do Movimento por Justiça Global mostra.
Outro legado perverso é que a esquerda que não foi às ruas passou a ter um profundo receio de mobilização. E isso é um problema mais sério, já que as direitas entenderam que podem não apenas ocupar as ruas como usá-las pra erodir o que restou do Brasil.
Lembrei do excelente documentário "O dia que durou 21 anos" e à luz de tudo que veio em seguida ficou a dúvida: foram só 21 anos ?
Quanto de responsabilidade há na nossa letárgica sociedade (e aí cabe todo mundo, imprensa, sociedade civil, imprensa, igreja, imprensa, instituições públicas, imprensa, esquerda, etc etc) para que esse estado de coisas viesse novamente a tona, pelo simples fato de nunca expor, divulgar e muitas vezes reconhecer a responsabilidade militar por suas barbáries até hoje impunes?
Tudo isso desaguando numa nostalgia débil do tio branco, hétero, ligeiramente abonado, que sem pudor algum brada: NUNCA FOI PERSEGUIDO NO GOVERNO MILITAR !
sem se dar conta que nunca foi perseguido em momento algum de sua vida.
Como concluiu Celso Furtado: A solução está na cultura !
Por isso, Carapanã, agradeço sua competência em expor idéias.
Faça barulho, precisamos.
Ainda lembro de esperanças que brotavam da baderna das jornadas de junho de 2013. Talvez fosse meu corpo astênico tentando se recuperar do tratamento do câncer. Talvez fosse a ingenuidade de que ver brasileires nas ruas faria a diferença. O gosto ruim só apareceu junto com os cartazes pedindo a volta da ditadura, os panelaços contra a Dilma (que presidenta péssima, socorro, mas não merecia impeachment) e a sequência de sanguessugas, primeiro o vampiro depois o capeta em pessoa. Eu grudo no esperançar do Paulo Freire do alto da minha desesperança. E vamos em frente, porque a vida se faz é no processo. Obrigada, querido, pela lucidez.