Todos os caminhos levam aos quartéis
*Texto da coluna ehvarzea que foi ao ar em 04/12/2020
Em 2018 nos dias seguintes à ameaça do General Villas Boas ao STF eu disse que a era do juízes e promotores célebres estaria chegando ao fim: viveríamos a era dos generais. Meses antes Villas Boas havia defendido seu colega, o General Mourão, já célebre pelos ímpetos golpistas que volta e meia verbalizava em lojas maçônicas pelo país afora.
A juristocracia brasileira, incensada pela mídia como uma ferramenta de destruição das esquerdas, rapidamente passava a ser coadjuvante num processo que culminaria de destruição do próprio país. Sob a desculpa de manutenção da ordem, a manobra de Villas Boas foi defendida por muita gente que queria ver o Partido dos Trabalhadores enfraquecido na disputa eleitoral. Derrotado nas urnas, o PT deu lugar ao bolsonarismo que, tão logo chegou ao poder, infestou o alto escalão da República com militares da ativa e da reserva.
Há uma opinião popular nos grandes veículos de mídia brasileiros de que os militares seriam “técnicos”, “competentes”, “capazes” e “respeitadores da democracia”. Cada vez que o bolsonarismo apronta das suas – do negacionismo da pandemia à destruição das relações internacionais do Brasil – os militares são chamados para dar um contraponto “moderado”. O desespero dos tolos foi capaz de produzir a ilusão de um improvável General Mourão Moderado.
Mas que moderação? As Forças Armadas brasileiras aprenderam, em diversos momentos, que o melhor inimigo é aquele que se fabrica. Sertanejos em canudos como ameaça à ordem. Camponeses espoliados no Contestado como inimigos da Nação. Plano Cohen, a conspiração comunista inventada que cedeu argumento para a implantação da Ditadura de Getúlio Vargas. O Golpe de 64 descrito como uma “contrarrevolução” que teria salvado o país de uma “ameaça comunista”. O AI-5 gerado a partir dos atentados, em sua maioria, cometidos por militares para jogar a culpa nas esquerdas. A re-embalagem dessa ameaça vermelha na Nova República a partir de fantasias neofascistas como o “marxismo cultural”… O inimigo imaginário é o melhor inimigo, especialmente porque ele não precisa ser combatido de fato. A imaginação justifica o arbítrio e esconde a incompetência, incompetência que torna possível aos nossos fardados sugerir aos seus colegas chilenos que os protestos naquele país poderiam ser resultado da interferência de George Soros.
No Brasil de hoje todos os caminhos levam aos quartéis. Os militares ditam o que é aceitável na política e Bolsonaro é o testa de ferro perfeito. Sua incompetência, burrice e temperamento explosivo faz com que poucas manchetes sejam dedicadas aos mandos e desmandos dos mais de 3 mil militares que acumulam cargos no governo.
Todos os caminhos levam aos quartéis quando um homem negro, cliente de um hipermercado, é assassinado na frente das câmeras por uma indústria de segurança privada gerida por policiais militares. Todos os caminhos levam aos quartéis quando a Ditadura militar ajudou a organizar grupos de extermínio que mais tarde virariam as milícias, o poder paralelo que ameaça de morte e mata políticos das esquerdas – principalmente mulheres negras.
Talvez seja essa a sina de uma democracia imperfeita, criada a partir de um golpe militar… golpe militar este, resultado do empoderamento das classes militares a partir do banho de sangue que foi a Guerra do Paraguai. Mas a julgar pela qualidade dos “herdeiros” (e aqui abuso das aspas) da família que circulam por aí, talvez o Marechal Deodoro da Fonseca tenha mesmo nos feito um grande favor…
Talvez o mundo fosse mais simples e melhor quando os brasileiros acreditavam em fantasias como o respeito das Forças Armadas à democracia. Esse respeito é condicional, vejam bem. Os fardados sempre se arrogaram a fiadores da nossa frágil democracia. Quando voltamos à sabotagem da Comissão da Verdade, as homenagens repetidas aos operadores dos porões, e o endosso ao projeto Bolsonaro… os generais podem responder com um singelo “mas isso tudo ainda é democracia, né? Não fizemos como em 1964” entre uma nota ameaçando o STF e outra…
Sempre repito que gosto dos livros do Elio Gaspari sobre Ditadura não exatamente porque causa da perspicácia do autor, ou suas opiniões: gosto porque ali estão registradas muitas opiniões dos próprios generais que tocavam essa República Banânica. E há uma frase repetida do prólogo do primeiro livro ao fechamento do último: a de que os militares criaram a Ditadura e acabaram com ela. Assim mesmo, como se fossem os protagonistas únicos de todos aqueles 20 anos de desgraças. Como se fossem o veneno e o antídoto, alfa e ômega... mas só até a primeira comissão de investigação dos crimes de Estado, aí até o torturador de crianças se torna o mais puro dos heróis.
Esse cinismo canalha, esse duplipensar tão típico é a força motriz do Brasil atual. As Forças Armadas, empoleiradas em Brasília, olham por nós como sacerdotes divinos, além do alcance de qualquer poder, de qualquer escrúpulo, fingindo que estão feridos por colunas de opinião educadinhas ou bravatas como essa daqui. Crentes que sua aura de lei e ordem basta a esse país autóctone eles se dão ao luxo de, por exemplo, deixar de exercer o controle, rastreabilidade e identificação de armas de fogo e munições. Ou, quem sabe, de nomear um Ministro da Saúde que saiba o que é o SUS. O mais importante é simular guerra na Amazônia junto ao exército dos EUA para ajudar na fracassada tentativa de reeleição de Donald Trump. Ou, quem sabe, espionar cientistas em convenções do clima, ou monitorar padres no Vaticano.
Todos os caminhos levam aos quartéis. Já faz um tempo que quando um cidadão de bem se sente ofendido por uma opinião alheia ele corre pra esconder atrás de um general, ou quem sabe um operador dos porões. Enquanto isso o Brasil toca a vida como sempre tocou, com os generais estrelados ornando a abóbada celeste enquanto os civis insignificantes torcem pra não ser alvo de um excludente de ilicitude já que, por mais imaginário que seja o inimigo, a munição é real.